Cobrado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) a dar mais transparência às emendas parlamentares, o Congresso concentrou um quinto dos recursos previstos neste ano em ações genéricas, que não detalham como a verba será aplicada.
Levantamento do GLOBO mostra que foram R$ 9,7 bilhões reservados para itens como “fomento à agricultura” e “apoio a projetos de infraestrutura turística”, que, na prática, podem incluir desde obras de pavimentação de ruas à compra de tratores. A destinação exata, porém, só é definida após tratativas dos congressistas com prefeituras e governos estaduais.
É como se o dinheiro fosse enviado para um caixa geral, a fim de ser gasto conforme a conveniência política dos deputados e senadores responsáveis por enviar os recursos. Especialistas veem uma estratégia para dificultar que a verba seja rastreada por órgãos de controle.
Ao todo, os recursos foram concentrados em seis das 275 ações previstas no Orçamento de 2025 que receberam emendas. Essas rubricas genéricas incluem ainda itens como “apoio à política nacional de desenvolvimento urbano”, “desenvolvimento de atividades e apoio a projetos de esporte, educação, lazer” e “desenvolvimento de políticas de segurança pública”.
O valor destinado a essas seis ações específicas aumentou cerca de dez vezes nos últimos anos, acompanhando o crescimento dos valores das emendas. Em 2016, por exemplo, parlamentares haviam destinado R$ 1 bilhão para estes mesmo itens, em valores corrigidos pela inflação.
Ofício para ministério
A ação genérica que recebeu a maior cifra neste ano, com R$ 3,65 bilhões, é descrita como “apoio a projetos de desenvolvimento sustentável local integrado”, vinculada ao Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional. A pasta é comandada por Waldez Góes, indicado ao cargo pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP). Segundo o manual de emendas distribuído aos parlamentares, essa ação permite que o dinheiro seja usado para construção e manutenção de vias, mas também para aquisição de máquinas agrícolas e construção de abatedouros públicos e cisternas, entre outras.
Essa ação, sozinha, representa 44% dos recursos do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional. Além dos R$ 3,65 bilhões de emendas parlamentares, há mais R$ 1,1 bilhão de verbas da própria pasta.
O senador Weverton (PDT-MA) foi o que destinou a maior emenda para a ação genérica do Ministério da Integração, de R$ 23 milhões. O valor, segundo ele, deve ser aplicado no Maranhão, seu reduto eleitoral, em obras e aquisição de caminhões, tratores, grades aradoras e carretas agrícolas. O parlamentar disse que enviará um ofício à pasta informando como e onde os recursos deverão ser gastos.
— Na hora de se tomar a decisão (sobre como o recurso será gasto) é que o deputado ou senador manda um ofício com sua opinião formada. Não vejo problema nenhum, pelo contrário, dá mais condições de atender a demanda de acordo com a realidade de cada município — argumenta.
O ofício enviado pelo parlamentar ao ministério, contudo, nem sempre é tornado público. Com isso, o destino e o objeto só são conhecidos após a execução, isso é, do envio dos recursos.
Nos últimos anos, o processo de tornar as emendas cada vez mais abrangentes, permitindo liberdade aos congressistas para definir sua aplicação, tem se intensificado.
Em média, o Congresso aprova cerca de seis mil emendas por ano, mas esse número já foi muito maior: em 1991, foram apresentadas quase 72 mil, segundo estudo dos especialistas em Orçamento Hélio Tollini e Marcos Mendes, publicado no fim do ano passado.
— O número vem caindo porque o parlamentar só precisa definir o destino e o objeto no momento da execução. É possível fazer uma emenda com valor muito maior para ações de perfil extremamente amplo. Obras de pavimentação, que têm grande apelo político e visibilidade, são realizadas por diversos ministérios, como o do Turismo e, até recentemente, o da Defesa — afirma Tollini.
Um dos casos que exemplifica a liberdade dada aos parlamentares são os recursos enviados para “apoio a projetos de infraestrutura turística”, com R$ 1,3 bilhão previsto para este ano, sendo R$ 1 bilhão de emendas parlamentares. Essa ação permite investimentos que vão da construção de calçadas até a de aeroportos.
Praticamente todo o montante das emendas para essa ação veio de apenas duas propostas: uma da Comissão de Turismo da Câmara, no valor de R$ 500 milhões, e outra da Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo do Senado, no valor de R$ 400 milhões. Na prática, esses recursos serão pulverizados em centenas de obras, cuja definição ocorrerá apenas no momento da execução, a partir de ofícios de deputados e senadores.
— Isso compromete a qualidade do gasto público: se praticamente todo o orçamento de um ministério se concentra em uma única ação orçamentária, ela perde o sentido de existir. O ideal seria que houvesse um mínimo de detalhamento — afirma Marina Atoji, diretora de programas da Transparência Brasil.
De acordo com Atoji, esse tipo de concentração também gera problemas de planejamento e transparência, já que a informação sobre a destinação dos recursos só é reconhecida depois da sua indicação pelo congressista, inclusive para o próprio governo, que irá transferir os recursos para estados e municípios.
Queda no investimento
Além da concentração de emendas em ações genéricas, um estudo da consultoria da Câmara identificou uma queda na destinação de recursos para investimentos. Em 2023, 95% das emendas foram destinadas para este fim, enquanto neste ano o percentual caiu para 85%, com espaço maior para gastos de custeio, isto é, para manutenção da máquina pública.
O levantamento, feito a pedido da deputada Adriana Ventura (Novo-SP), aponta ainda que, em 2024, 57% do valor total das emendas de bancadas estaduais foram destinados a custeio. O documento aponta uma migração gradual das emendas coletivas para ações genéricas, cujo detalhamento só ocorre na execução.
— Existe a justificativa de que são necessárias obras estruturantes, como estradas. Mas, analisando o histórico, vê-se que pouco é feito nesse sentido. Esse mecanismo é utilizado, tanto em emendas de comissão quanto de bancada, para viabilizar depois as chamadas emendas individuais — pontua a deputada.
Em decisões recentes, o STF vem cobrando mais transparência do Congresso sobre a destinação das emendas e maior alinhamento dos repasses com projetos prioritários de cada região.
Há dez dias, o ministro Flávio Dino determinou que a Câmara dos Deputados e o Senado Federal informem como será feita a identificação dos autores das emendas de comissão e bancada. Ele também solicitou que a AGU (Advocacia-Geral da União) esclareça o uso do Cadastro Integrado de Projetos de Investimento, ferramenta que deve indicar se os recursos estão sendo aplicados em projetos estruturantes. (Com O Globo)