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Pequeno profundo diário II: domingo.

07/04/2017 - 08h49

Raquel Anderson 

O uivo do vento na calada da noite potencializou o tamanho da madrugada esticada, sem sono. E chegou a hora em que ela digeria a vida, juntando os pedaços espedaçados ao longo do dia.


Feito uma criança ativa que, forçadamente, abre o olho da mãe quando está adormecida, ela desejava abrir o olho do galo, arrancá-lo do poleiro e ordenar, com uma autoridade inquestionável, que ele cantasse, arrebentando a noite, ampliando a ...barra do dia, o dia da lida, que parecia correr mais rápido...e ela constatou que o galo tinha supremacia, cantava só quando queria, constatou ainda que não há possibilidades concretas para todas as coisas e ficou, mais uma vez, confusa pela dicotomia existente entre o desejo e o possível, o querer e o permitido, o aceitar e o contestar, o acatar e o ignorar, o prazer e a dor, a mansidão e a brabeza, a rudeza e a delicadeza....


Não havia nela nenhuma consciência do seu empoderamento feminino ou da sua emancipação individual, apenas o acanhamento, o deixar-se conduzir sem questionar e seguir com as lidas caseiras, com suas tarefas costumeiras...contudo, há uma força indizível dentro de uma mulher, no seu eu mais profundo, que ela arranca nas horas mais duras, extrai do sulco de suas fissuras o alagamento que inunda o seu maior patrimônio, o humano, de coragem e ousadias... então, ela queria antecipar o dia, mandar no galo, acender o fogo, esquentar a água, coar o café, manter-se de pé, trabalhar sem parar, ainda que fosse para apenas peperecar e caçar serviço, para disfarçar sua ansiedade e abafar seu alarido solitário.


O galo finalmente cantou, o dia raiou, era um domingo ensolarado, domingo é o dia diferente em todos os lugares, no campo, na cidade, na riqueza e na pobreza é o dia diferente. Dia do recolhimento, do descanso ou do trabalho dobrado, com chuva ou com sol, no domingo há a necessidade da mansidão, é cultural, natural, normal....e, para ela, observando as vacas, com inveja do ruminar parcimonioso, com inveja do cheiro de bosta da vaca que é gostoso, sentada na sombra do limoeiro, pensou no bom de ser bicho quando dói ser gente e não ter na mente opções....como alterar a condição, não ter como dizer não.... mas a força, a louça pra lavar, a força do desejo, desejo louco de mudar...relatos virão....
"- Vamos entrar...


- Não tenho tempo!
- O que é que houve?
- O que é que há?
- O que é que houve, meu amor, você cortou os seus cabelos?
- Foi a tesoura do desejo, desejo mesmo de mudar" (Alceu Valença)

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