O 1º site político de Mato Grosso do Sul   |   23 de Abril de 2024
Publicidade

Meia noite!

02/08/2017 - 10h46

Raquel Anderson 

Segunda-feira, pendências, ressaca, fome...sede...
Fui até o “minha nêga”, o delicioso espetinho, na calçada, próximo da minha casa, onde o Jack, o proprietário, sempre sorridente e simplório, atrapalha-se, enormemente, entre assar o espetinho, beber a sua cervejinha e atuar como DJ com um repertório que, segundo ele, “vareia” de Amado Batista, Valdique Soriano,de sertanejos a Bob Marley, Simon & Garfunkel, Beatles, chamamés, sambas, calipso, Ivete Sangalo, Diana, Odair José, Zé Ramalho, Raul Seixas, Clara Nunes, Zeca Pagodinho, Guilherme Arantes...totalmente eclético. O sonzão fica sobre a mesa, na calçada, e ele faz uma zona no meio de cds e pendrives, com o som no volume alto, nem ele próprio se entende. 
Com avental preto e lenço na cabeça, Jack é todo sorriso.
Na verdade, o estabelecimento não tem nome, não há placa, nada. Numa das minhas idas lá, sempre bem acompanhada, comigo mesma, me sentei, ele aproximou-se, com o seu costumeiro sorriso e me disse:
“-Tudo bem, minha nêga?”
Pronto, virei fã!!
Uma senhora, cinquentona, reestreando sua solteirice, carente, tratada por “minha nêga!” “xonei”, foi demais! Apelidei, imediatamente, o lugar de “minha nêga”.
Adoro a formalidade com que o Jack me trata, verdadeiramente, é incrível, basta eu chegar e ele, todo solícito, receptivo:
“-Boa noite, minha nêga, a senhora está bem?”
Fico ali, observando tudo e ouvindo as músicas, curto ouvir músicas bregas também.
O Jack senta-se com os clientes, ri, dá palpite, intromete nas conversas, uma delícia de ver a simplicidade das pessoas puras, descoladas, sem maldades. O espetinho é uma delícia, tudo caprichado, com uma mandioca maravilhosa, do jeito que uma boa aquidauanense gosta.
Hoje foi um dia muito especial no “minha nêga”, fui surpreendida pelo meia noite:
“-Boa noite, moça!”
“-Por favor, você pode me dar um pouquinho de atenção?”
-Posso, claro!
“-Minha profissão é pintor e eu amo o que eu faço.”
-Seja bem vindo! 
“-Posso me sentar aqui um pouquinho com a senhora?”
-Pode sim, muito prazer, meu nome é Raquel, e o seu?
“-O meu é meia noite, desde que eu nasci, e eu amo ser meia noite, não me vejo de outra forma, meu nome mesmo é Júlio e O...Neto, mas eu sou o meia noite!”
Ele estava com um pedaço de piso vitrificado, quebrado, na mão, abriu um estojinho, muito pequeno e, com os dedos, começou a pintar, com traços consistentes, as mãos totalmente lambusadas de tintas, ia criando imagens, à partir de pontos, esfumaçando-os com um paninho preto, bem encardido de tintas. Num dado momento, meia noite levanta-se, pede para ver o meu vestido e volta para sua cadeira criando essa lindeza.
Ele ficou surpreso com o tratamento recebido, escancarava seu lindo sorriso, a cada palavra.
Perguntei:
-De onde você é?
“-Sou da Bahia, mas perambulo pelo país...”
“- Estou aqui há dois meses e acho que vou ficando um pouco, sou hippie”
-Você pinta sempre?
“-Só sei pintar, amo o que eu faço, pinto desde pequeno.”
Eu escrevi um poema para os artistas de rua, posso lê-lo para você?
“-Nossa!!! Você escreve?”
-Sim, sou escritora, li o poema:
ARTISTA DE RUA!
Artista de rua que coragem é a sua?
Ensina-me a viver
Sou fraca na arte de me atrever
Você enfrenta, suporta, aguenta...
Corre riscos, é só sorrisos, sem medo de sofrer
Dribla, ziguezagueia, seu palco é o asfalto, areião, onde possa se mover
Sua capacidade revela habilidade a cronometrar o tempo no sinal a percorrer
Vestido de palhaço, com gaita no antebraço, ameniza nosso cansaço, sossega nossa pressa e nos leva a enternecer
Equilibrado no monociclo, a contemplá-lo eu fico, com sua performance eu me reciclo e me vejo criança outra vez
Com o fogo que sai da sua boca, vejo a vida que queima, você, artista,monta sua cena para se defender. 
Sua arte é o seu orgulho, jamais irá se arrepender.
Com malabares define destreza, essa é a sua grandeza, artista seu nome é beleza, reverencio-me ante a você!
Arte da rua e do chão, esse é o seu ganha pão, supera toda negação. Se orgulha da sua ação, exala no sol, na chuva, na noite, no relento, no dia, na esquina, no sinal, no meio fio, na sombra e no lamaçal. Sua arte é contribuição, escancara emoção!
Olhos marejados:
“Conhecer a senhora foi uma das coisas que eu nunca esquecerei!”
“-Eu amei isso!”
“-Eu fui adotado três vezes!”
-Quantos anos você tem?
“-Eu tenho 28 anos!”
-Eu tenho um filho da sua idade.
“- Então, sabe o que é ser adotado três vezes e ser devolvido?”
-Nossa, como assim?
“- Eu sempre tive certeza que mainha um dia voltaria para nos buscar, somos em cinco irmãos, a gente estava em três no orfanato, eu não queria me separar dos meus irmãozinhos, eu tinha certeza que mainha um dia ia nos buscar, eu sabia disso, então eu era muito malcriado com quem me adotava e fazia de tudo para ser devolvido, até que um dia mainha foi mesmo pegar a gente de volta.
-E qual é o lance de ser hippie?
“-É proibido proibir, saca? Esse é o lance, a liberdade!”
-O que você está achando daqui? Já foi para o interior do estado?
“-Eu achei o povo muito conservador, no interior as pessoas são mais acolhedoras, fui para Cassilândia, Bonito, Aquidauana e Piraputanga.”
“-Eu estranhei muito você, posso te chamar assim?”
-Pode, tranquilo!
“-Eu estranhei você me deixar sentar aqui, na sua mesa, eu sinto o preconceito no olhar das pessoas e você me olhou como eu sou, gente!”
“-Ainda dói o preconceito, apesar dele ser diário e eterno!”
-Meia noite, preste atenção no que eu vou lhe dizer:
-Você é igual a mim, não há diferenças entre nós, eu o respeito muito, você tem um grande valor, é um artista, é um ser humano autêntico, descolado.
-Você quer comer alguma coisa?
“-Eu acabei de rangar ali, posso tomar uma guaraná?”
-Sim, claro que pode!
-E seu pai, meia noite? Você topa falar?
“- Falo sim, Olha: o meu pai biológico abandonou a gente, mainha, que nada tinha, ficou sem nada, nada mesmo, teve quer dar três dos cinco filhos, né?! Daí ela casou com o meu padrasto, eu tenho maior orgulho desse cara, que ajudou a me criar, depois dele mainha pôde resgatar a gente do orfanato, mas antes disso foi barra, já fui parar na Febem!”
-Por que?
“- Porque foi agoniante ver mainha chorando no dia vinte e quatro de dezembro, quando eu fui passar o natal com ela, não havia nada pra comer, uma mesa vazia, fiquei muito puto, sabe, e caí na marginalidade, assaltei, fui pra Febem, mas me arrependi, juro!”
-“Depois da maioridade nunca mais fiz coisas erradas, que, na verdade, o que é errado, né?! A gente tinha fome! Agora eu to aqui, a minha cultura de hippie tem regras, muito pontuais, a gente cobra do outro, se o cara não manda bem na vida, a gente tem que se garantir no trampo, não pode vacilar, não pode mandar mal com as mulheres, elas são maravilhosas, embora eu dê umas escorregadas quando estou com uma galera e não volto pra elas, faço umas feiúras, tá ligada?”
-Sei, até os hippies, rs.
-E os “baratos”, meia noite?
“-Ah! O barato, a maioria dos hippies curtem, são poucos os que não, eu curto, mas é coisa leve, manjas?”
-Hum...
Meia noite relatou-me longamente sobre seus quadros, descreveu vários, todos com apelo social, retratam favelas, violência, dor, crianças. Meia noite me fez ganhar a segunda-feira com sua autenticidade, sua coragem de viver perambulando, seus desejos de mudar, sua mochila, poucas coisas, levezas, apesar das durezas na vida, levezas nas bagagens, levezas no olhar. Meia noite não paga impostos, não tem endereço, não se preocupa com convenções, não tem celular, não paga boletos, não declara imposto de renda, não tá nem aí pra porra nenhuma. Meia noite, é zero hora, é o nada que a sociedade abomina, nem é visto, passa incólume.
Meia noite é a escuridão que carrega o mais belo luar, é a verdade, é o que se quer ser, é o sonho de ser um Portinari, é o sarau na praia, é viver mocozado, é o passado que dói, é a coragem que o reconstrói, é a carona, os olhos lacrimejados, é saber o que é ser negro, pobre, é a simpatia, é a felicidade por ser bem tratado, é a pintura na tampa do vaso sanitário encontrado, a sua maior arrecadação, no “passar a touca”.
Meia noite é educado, despreocupado, é leve, tem um sorriso feliz, meia noite é a reflexão sobre as importâncias humanas!!
Meia noite escreveu pra mim, no meu quadro:
"Doces palavras que deixou no meu pensamento a importância de fazer o que fazenos. Enquanto viver não deixe de escrever e eu nunca vou deixar de pintar. Coisas assim ensinam o mundo a amar!"
E eu estou com um livro na mão!! Ele é demais!!!

Leia Também
Comente esta notícia
0 comentários
Mais em Raquel Anderson
Colunistas
Ampla Visão
Copyright © 2004 - 2015
Todos os direitos reservados
Conjuntura Online